Infelizmente, dedico boa parte do meu tempo a processos de anulação de casamentos. Um dos motivos mais freqüentes de nulidade é o de que o consentimento estava viciado pela exclusão de um dos três tradicionais bona (como se diz em latim) ou bens do casamento: o bonum fidei (fidelidade a um só cônjuge, a exclusividade da união matrimonial), o bonum sacramenti (a permanência do vínculo matrimonial, a indissolubilidade da união) ou o bonum prolis (a prole, a fecundidade da união).
Cada um destes valores ou bona traz consigo um aspecto de obrigação. É lógico e conveniente, portanto, que nós, os juízes eclesiásticos, concentremos a atenção nesta alternativa: a pessoa que se casou aderiu realmente a essa obrigação ou não? Por outro lado, porém, não acho tão saudável que as pessoas em geral considerem estes bona sobretudo ou simplesmente como obrigações… Pensando assim, facilmente acabariam por concluir que, na medida em que se trata de obrigações – com todo o peso que qualquer obrigação implica, e dada a nossa tendência para evitar qualquer peso -, a exclusão da fidelidade, da indissolubilidade ou da prole não deve ser algo estranho ou inusitado. Pelo contrário, pensarão até que há boas razões para considerar esse fenômeno como algo normal e previsível…
É evidente que não me refiro a meras considerações teóricas. Receio que inúmeros cristãos – sem falar dos que têm uma especial missão de formar e guiar os outros, professores e conselheiros – deixem de surpreender-se com a idéia de que as pessoas excluam um ou outro destes bona no momento em que se casam. Pode parecer-lhes até bastante natural.
Contudo, a exclusão desses valores é surpreendente, justamente porque não é natural. E não é natural porque ninguém rejeita obrigações ou responsabilidades que acompanham necessariamente a aquisição de uma coisa boa. Se uma coisa é muito boa, a bondade que proporciona supera de longe todo o peso das responsabilidades. A compra de um automóvel também supõe uma série de obrigações e responsabilidades; mesmo assim, quase todas as pessoas consideram o automóvel uma coisa boa e pensam que, apesar das desagradáveis obrigações que contraem, vale a pena comprarem um carro, ou até dois ou três, se puderem pagá-los - Conheço uma família africana com dezoito filhos e sem automóvel, e uma “família” americana (entre aspas, porque não sei se merece esse nome) com dezoito automóveis e sem nenhum filho. Honestamente, penso que a família africana é muito mais feliz: pelo menos dezoito vezes mais.
Foi Santo Agostinho quem teve a feliz idéia de nos descrever os elementos essenciais do casamento como bona: como coisas boas. E é o Papa João Paulo II quem, na Familiaris consortio, nos fala da indissolubilidade como de uma alegre realidade que os cristãos devem anunciar a todo o mundo. “É necessário – diz – reafirmar a boa nova da natureza definitiva do amor conjugal” (Familiaris consortio, n. 20)
A fidelidade e os filhos são coisas boas. A indissolubilidade é uma boa notícia! Tanto o Bispo de Hipona como o Romano Pontífice fazem afirmações que nos estimulam a pensar, a seguir uma linha de raciocínio que nos conduza a descobertas e redescobertas. No meu modo de ver, é vital para o futuro do casamento e da família que redescubramos algo de elementar que está escondido nessa doutrina, algo que deveria ser bastante óbvio para todos, mas que vem sendo demasiado obscurecido: o simples fato de que cada um dos bona matrimonialia (dos bens matrimoniais) é exatamente um quid bonum, uma coisa boa. Cada um desses bens é bom porque contribui poderosamente não só para o bem da sociedade, mas também para o bonum coniugum, para o bem dos cônjuges, para o seu desenvolvimento e amadurecimento como pessoas que devem crescer em dignidade, em caráter e em generosidade: que devem aprender a amar. (Afinal de contas, este é o bem definitivo que todos temos de adquirir e desenvolver neste mundo: a capacidade de amar).
Só na medida em que as pessoas recuperarem este modo de pensar compreenderão corretamente que, sendo esses bona coisas boas, são também desejáveis. E, por isso, é natural desejá-los. É natural, porque corresponde à natureza do amor humano.
Todo o homem encontra qualquer coisa de profundamente bom na idéia de um amor: a) do qual ele é o objeto único e privilegiado; b) que será seu enquanto durar a sua vida; c) através do qual, tornando-se um co-criador, poderá perpetuar-se a si próprio (e até mais do que a si próprio, como veremos mais adiante). A bondade que o homem vê nos bens do casamento faz que lhe seja natural não só não temê-los nem excluí-los, mas até procurá-los e acolhê-los.
É natural, portanto, desejar uma união matrimonial fecunda, permanente e exclusiva. É antinatural excluir qualquer desses três elementos. Temos de recuperar a perspectiva correta para que essas realidades nos atinjam com todo o seu peso – e, através de nós, possam tornar-se evidentes para os outros.
Em primeiro lugar, é óbvio que a fidelidade e a exclusividade são algo bom: “Você é insubstituível para mim”. Temos aí a primeira afirmação verdadeiramente personalizada do amor conjugal, que aliás constitui um eco das palavras de Deus dirigidas a cada um de nós, no livro de Isaías: Meus es tu, tu és meu (Is 43, 1).
A indissolubilidade também é algo evidentemente bom, como é bom ter uma casa, um abrigo estável; conforta saber que se pertence a alguém, e que esse alguém nos pertence, e que se trata de algo definitivo. As pessoas desejam esta situação, foram feitas para ela, compreendem que deverão sacrificar-se para obtê-la, e sentem que esse sacrifício vale a pena. “É natural para o coração humano aceitar exigências, mesmo que sejam árduas, por amor a um ideal, e, acima de tudo, por amor a uma pessoa” (João Paulo II, Audiência Geral, 28 de abril de 1982) Algo de muito estranho se passa no coração e na cabeça de alguém que rejeita a permanência da relação conjugal.
De qualquer modo, não me estenderei mais a respeito destes dois aspectos, pois quero concentrar a atenção no bonum prolis, no bem que supõe ter filhos.
QUANDO ALGUÉM SE PRIVA DE UM BEM
A mentalidade contraceptiva – dolorosamente diagnosticada pela Encíclica Humanae vitae, em cujas páginas se encontram os remédios apropriados – é uma doença que pode vir a ser fatal para a sociedade ocidental. O ponto essencial da questão não são os debates ou discórdias sobre a moralidade de determinadas técnicas de planejamento familiar; na verdade, isso não passa de um aspecto do quadro patológico global. A verdadeira doença é que quase toda a sociedade ocidental passou a encarar a limitação do número de filhos como uma coisa boa e não é capaz de entender que é a privação de uma coisa boa.
Não me refiro, é claro, àqueles casais que, por razões de saúde, econômicas, etc., realmente precisam recorrer a uma planejamento familiar natural (e o fazem com tristeza). Penso em outros, em muitos outros, que teriam condições de manter uma família mais numerosa, e voluntariamente se recusam a fazê-lo, aparentemente sem perceber que se estão privando de um bem. Preferem ter menos bona matrimonialia e mais bens materiais. E a qualidade da sua vida – cada vez mais materializada e menos humana – decorre inevitavelmente dessa escolha. Os bens materiais não podem manter um casal unido. Os bens matrimoniais, e em especial o bem de ter filhos, podem.
Com efeito, há algo de profundamente bom nesse aspecto específico da união sexual entre marido e mulher, no qual reside a sua autêntica exclusividade: esse compartilhar não tanto o que pode ser um prazer sem igual, mas é com certeza um poder sem igual, um poder que nasce da complementaridade sexual e traz ao mundo uma nova vida. O homem e a mulher anseiam profundamente por esta verdadeira união sexual e conjugal, e o seu anseio está fortemente arraigado na natureza humana.
Hoje, é particularmente importante ressaltar, em toda a sua plenitude, o caráter personalista deste desejo natural, que ultrapassa qualquer veleidade individual de auto-afirmação ou de autoperpetuação.
AUTO-AFIRMAÇÃO? AUTOPERPETUAÇÃO?
As relações sexuais entre os cônjuges que lançam mão de anticoncepcionais podem tornar-se um mero exercício de auto-afirmação em que cada um dos dois só se busca a si mesmo e não consegue voltar-se para o outro, conhecê-lo e entregar-se a ele. Pelo contrário, uma autêntica intimidade sexual entre os cônjuges, aberta à vida, é por natureza afirmativa: afirma o amor conjugal e a doação recíproca na mesma medida em que afirma a singularidade e a grandeza do poder sexual que marido e mulher compartilham.
O desejo de perpetuar-se é algo natural. Em si mesmo, já contém um valor personalista profundo. E se o homem moderno tem dificuldade em compreendê-lo ou senti-lo, isso é um sinal claro do nível de desvitalização, desnaturalização e despersonalização em que se encontra. De qualquer forma, na união conjugal, o anseio sexual procriador ultrapassa o desejo natural de a pessoa se perpetuar a si mesma. No contexto do amor conjugal, este anseio natural de autoperpetuação adquire um novo alcance e significado. Não se trata de dois “eus” desconexos, cada um deles preocupado apenas com a sua própria perpetuação, talvez de um modo egoísta. Mais do que isso, trata-se de duas pessoas que se amam e que naturalmente querem perpetuar o amor que os atrai um para o outro, a fim de que possam ter a alegria de vê-lo tomar carne num novo ser humano, fruto do mútuo conhecimento carnal e espiritual pelo qual os dois expressam o seu amor (cf. Gên 4, 1).
Duas pessoas apaixonadas querem realizar juntas uma série de coisas: querem projetar, construir ou montar algo que seja indiscutivelmente deles, como fruto da decisão e da ação dos dois. Nada, repetimos, pertence mais a um casal do que o filho que geram. O escultor plasma na pedra a visão de beleza que tem. Mas só os pais podem criar obras de arte vivas, em que o filho é um monumento único ao amor criativo que os inspirou e uniu.
A sociedade, através dos monumentos que constrói, evoca os grandes eventos do seu passado a fim de manter vivos, no presente e no futuro, os valores que a sustentam. O amor conjugal também precisa de tais monumentos. Quando o clima romântico começa a desfazer-se, e os cônjuges sentem a tentação de pensar que o amor entre eles se extinguiu, então cada filho se ergue como um testemunho vivo da profundidade, da singularidade e da totalidade da entrega conjugal mútua que fizeram um ao outro no passado – quando tudo era fácil -, e como um apelo urgente para que continuem a entregar-se agora, por mais duro que possa parecer.
No meu trabalho na Rota Romana, deparo freqüentemente com pedidos de anulação de casamentos – perfeitamente válidos – de casais jovens que se uniram legitimamente e por amor, mas cuja união desabou porque os dois, deliberadamente, adiaram a vinda dos filhos, privando o seu amor conjugal da sustentação que lhe é natural.
Se duas pessoas se limitam a olhar extaticamente uma para a outra, os defeitos que pouco a pouco irão descobrindo podem acabar por parecer-lhes insuportáveis. Se marido e mulher aprendem a estar atentos aos seus filhos, continuarão a descobrir os defeitos um do outro, mas já não terão tempo nem motivos para os considerarem insuportáveis. E para que coisas olharão juntos, se não tiverem nada para olhar? Uma série de ausências programadas vem transformando a vida conjugal de inúmeros casais de hoje numa realidade oca, num vácuo que cedo ou tarde acabará por desabar. O amor entre os cônjuges encolhe-se e desaparece se os dois permanecem demasiado tempo com os olhos fixos um no outro; para que cresça, tem de contemplar outros olhos – muitos outros olhos, nascidos desse mesmo amor -, e ser por eles contemplado - O amor de casais naturalmente infecundos, aos quais Deus não deu filhos, também deve crescer numa necessária dedicação aos outros.
O amor conjugal necessita, portanto, do apoio que os filhos representam - Quer seja um só filho, quer sejam dois, ou talvez cinco ou seis. Somente Deus sabe quantos filhos constituirão o apoio que cada casal requer. Por esta razão, se os cônjuges querem tomar decisões acertadas num assunto tão vital para a sua felicidade, devem fazê-lo com profundo espírito de oração - Os filhos reforçam a bondade do vínculo matrimonial, permitindo-lhe resistir às tensões que inevitavelmente se seguem ao enfraquecimento ou à desaparição do amor romântico, espontâneo. O vínculo matrimonial – que não se pode romper sem desobedecer a Deus – não é constituído somente pelo amor e sentimentos – normalmente instáveis – que existem entre marido e mulher; deve ser constituído, mais e mais, pelos filhos. E cada filho é um dos elos com que se forja essa corrente, é um dos fios com que se entretece essa corda.
Na sua homilia em Washington, D.C., em outubro de 1979, o Papa João Paulo II lembrava aos pais que “é sem dúvida menos grave negar aos filhos determinadas vantagens materiais e comodidades do que privá-los da presença de irmãos, que poderiam ajudá-los a crescer em humanidade e a compreender a beleza da vida em todas as suas idades e em toda a sua variedade”. Eu sugeriria aos pais demasiado propensos a limitar o número de filhos que lessem esta advertência do Papa à luz do ensinamento do Vaticano II: “Os filhos são o dom supremo do matrimônio e constituem um benefício máximo para o bem dos próprios pais”. Ou seja, esses pais não estão privando somente os filhos que já têm, mas a si próprios, de um bem único, de uma experiência insubstituível na vida humana.
É freqüente encontrar afirmações como esta: “As pessoas aceitam mais facilmente a idéia da limitação ou do planejamento familiar quando possuem um nível de cultura e educação mais elevado”. Concordemos ou não, admitir uma afirmação destas sem questioná-la é aceitar uma determinada filosofia de vida. Com efeito, só as pessoas que tenham recebido um tipo de educação muito peculiar, completamente impregnada de valores – ou antivalores – muito estranhos, é que conseguirão aceitar com facilidade a idéia da limitação familiar. Semelhante educação pode ser considerada educação cristã, ou mesmo simples educação? Vale a pena lembrar o juízo que o cardeal Newman fez da educação do seu tempo, em meados do século XIX. “O homem moderno”, dizia, “é instruído, mas não educado. Aprendeu a fazer coisas, e a pensar o suficiente para fazê-las, mas não aprende a pensar para além disso”…
Toda a questão, nesta matéria, gira em torno de valores e opções, de alternativas e bens.
Poucas pessoas podem ter todos os bens deste mundo. Mas há muitas que têm uma certa liberdade de escolha: posso escolher entre um bem A e um bem B, mas talvez não os dois simultaneamente. Terei de optar entre um e outro. A opção inteligente e autenticamente humana escolherá o bem melhor, sabendo que assim se enriquece: é a escolha educada. A opção pouco inteligente e pouco humana escolherá o bem inferior, e é provável que ignore quanto se engana e se empobrece ao fazê-lo.
Uma passagem significativa e enérgica da Bíblia é aqui perfeitamente oportuna: Ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua posteridade (Deut 30, 19). Não existe uma escolha intermédia entre a vida e a morte. Qual é, pois, o verdadeiro conteúdo das escolhas que o mundo ocidental vem fazendo?
Há algum tempo, no Quênia, um africano fez-me o seguinte comentário ao saber que o índice médio de fecundidade no Ocidente gira em torno de 1,2 filhos por casal: “Os casais do Ocidente devem ser muito pobres se não têm condições econômicas para criar mais de dois filhos…” Não era propriamente um especialista qualificado no assunto, mas as suas palavras podem fazer-nos pensar. Acrescentemos mais uma pitada desta sabedoria “não-tecnocrática”, desta vez colhida no próprio Ocidente. Conheci um jovem casal inglês, há alguns anos. Um casal normal que queria ter filhos. Nasceu o primeiro, e depois, sem que o quisessem, passaram-se três ou quatro anos sem que viessem outros. Por fim, a mãe engravidou pela segunda vez. O primeiro filho entusiasmou-se tanto quanto os pais. Infelizmente, ocorreu um aborto espontâneo. O pai teve que contar à criança que não ganharia o irmãozinho ou irmãzinha que esperava. “Olha, a mamãe não vai ter esse bebê”. Depois, aceitando os imperscrutáveis caminhos de Deus, acrescentou: “Foi melhor assim…” O menino, porém, não se rendeu tão facilmente: “Mas, papai, o que pode ser melhor do que um bebê?” Nenhum programa de computador é capaz de prever as saídas e as verdades com que as crianças nos surpreendem: essa sabedoria infantil também faz parte do bonum prolis…
O menino do nosso episódio possuía uma verdadeira escala de valores, o que, segundo a Humanae vitae, é exatamente a primeira coisa de que um casal precisa para encarar honestamente a regulação da natalidade (Cf. Humanae vitae, n. 21). Um casal que não considere a vinda de um filho como a maior e mais enriquecedora aquisição que pode fazer manifesta não possuir uma escala de valores verdadeira.
Muitos casais do Ocidente parecem não compreender a verdade tão simples de que os filhos são o fruto mais personalizado do seu amor conjugal, e que são, por conseguinte, não só o maior dom que podem oferecer um ao outro, como também um presente de Deus para os dois.
“Mas… se tivermos mais um filho, os que já temos e nós mesmos ficaremos numa situação financeira mais difícil…” Não me venham dizer que pensam realmente que o novo filho passará mal, a não ser que queiram pertencer ao grupo daqueles que se perguntam constantemente se a própria vida vale a pena, ou se a não-existência não será afinal de contas preferível à existência.
“Mas os nossos outros filhos, os que já temos, vão ficar numa situação pior…” Ficarão mesmo? O Papa afirma que, em termos verdadeiramente humanos, ficarão em situação melhor.
“Mas nós mesmos enfrentaremos uma situação pior. Passaremos por maiores dificuldades…” É bem verdade que vocês terão de trabalhar mais; aliás, hoje em dia muita gente trabalha mais do que as horas devidas para ter “bens” materiais. Por acaso isso os torna menos felizes?
Nas palestras que dou sobre o tema, costumo propor aos assistentes uma pequena análise comparativa, mais ou menos como esta:
Família A - 2 filhos - 2 carros - 2 TVs - filhos estudam em escolas boas e a família tira férias no exterior
Família B - 5 filhos - 1 carro - 1 TV - filhos estudam em escolas mais fracas e nunca tiram férias no exterior
Depois de traçar este esquema no quadro-negro, a primeira pergunta que proponho aos assistentes é: “Qual das duas famílias tem um padrão de vida mais alto?” Todos respondem em uníssono: “A família A, é lógico”. Repito a pergunta: “Qual das duas famílias tem um padrão de vida mais alto?” Percebe-se uma leve indecisão no público, mas repetem a mesma resposta. Continuo a repetir a pergunta diversas vezes. Instala-se a perplexidade, cresce a hesitação, até que alguém “concede”: “Bem, se o senhor considera os filhos como parte do padrão de vida, então…”
“Se o senhor considera”… Já é tempo de incluir os filhos na coluna do ativo, ao invés de deixá-los na do passivo. Ou em ambas, dizem vocês? Pois bem, em ambas: como se faz com o automóvel. Um automóvel é um item do ativo e do passivo. Custa dinheiro e esforços para ser adquirido e para ser mantido: exatamente como um filho. Ao escolher, vocês têm de começar por considerar qual dos dois vale mais, porque qualquer dos dois rebaixará o seu “padrão de vida” - Outra observação africana. Desconcertado com os argumentos da International Planned Parenthood Federation, disse-me certo queniata: “Tradicionalmente, quando a vaca do vizinho tinha um bezerro, a gente dava os parabéns àquela família porque o seu padrão de vida tinha melhorado. Agora, quando a mulher do vizinho dá à luz um filho, parece que a gente deve compadecer-se deles e dar-lhes os pêsames, porque o padrão de vida deles caiu… Preciso acabar de entender melhor a lógica de tudo isto”.
Perguntar qual dos dois trará maior benefício revela sem dúvida um ponto de vista mais utilitário do que idealista. Contudo, se alguém quiser aplicar este modo de ver ao nosso tema, deve começar por levar em conta o dinheiro, o tempo e o esforço que muitas pessoas investem hoje em dia no tênis, no computador pessoal, na jardinagem criativa, etc.: fazem de tudo e lêem de tudo sobre esses assuntos, à procura de uma satisfação que nem sempre encontram. Por que não considerar que a paternidade merece o esforço? Por que não estudar uma série de livros (existem muitos) sobre a alegria proporcionada pelos filhos, ou sobre as satisfações de ser pai? E – voltemos a alargar os nossos horizontes -, por que não sentir o apelo dessa criatividade absolutamente incomparável, a aventura de ser co-criador?
No mais íntimo do seu coração, muitos casais devem sentir sem dúvida a verdade de que um filho é uma boa e grande dádiva. O problema é que vêm sendo condicionados para não confiar nessa verdade. E é por isso que precisam de que alguém os ajude a conquistar essa confiança. No meu modo de ver, somente os casais que optaram pelo bem de ter filhos, em toda a plenitude com que Deus desejava abençoar-lhes o casamento, estão habilitados a ensinar e transmitir essa confiança. O Papa Paulo VI, na Humanae vitae, quis destacar em primeiro lugar, entre os pais que compreendem e vivem a paternidade responsável de acordo com a vontade de Deus, aqueles que tomam “a deliberação ponderada e generosa de ter uma família numerosa” (Humanae vitae, n. 10)
Muitos casais de hoje vêm sofrendo de uma auto-privação, de um empobrecimento voluntário, causado pelo fato de recusarem o dom da vida e a fecundidade do amor. Não me surpreenderia se a história viesse a registrar a nossa sociedade moderna, tão preocupada com o bem-estar, como “a sociedade empobrecida”, na qual povos inteiros se foram depauperando até à morte porque o sentido verdadeiramente humano dos valores foi pouco a pouco sugado das suas vidas.
A PERDA DA SEXUALIDADE
Uma última palavra sobre a idéia de auto-privação. Às vezes, privar-se de alguma coisa pode ser necessário e sensato, por exemplo quando motivos de saúde exigem que alguém se prive de alimentos sólidos. Esse jejum, no entanto, não deixa de ser uma privação, e se não se quiser que termine na morte, deve ser temporário, para que o paciente possa voltar a alimentar-se de maneira saudável e normal. O apetite sexual da sociedade ocidental moderna não é normal nem saudável, nem – como vimos no capítulo anterior – realmente sexual.
Os defensores da contracepção rejeitam o ensinamento da Igreja segundo o qual os aspectos unitivo e procriador no sexo conjugal são inseparáveis, e afirmam que é perfeitamente legítimo separá-los, já que a anticoncepção anula o aspecto procriador, mas respeita o unitivo. Ora bem, na realidade, não é isso o que acontece quando se recorre a esses meios. O verdadeiro efeito das práticas anticoncepcionais não é separar esses dois aspectos, mas anulá-los. Que o sexo submetido a anticoncepcionais não é procriador, é evidente para qualquer pessoa, mas o que não é tão claro é que não seja unitivo, pelo menos em sentido conjugal. Ora bem, o que uma análise mais profunda dos fatos nos diz é que nem mesmo é sexo, num sentido propriamente humano.
Na contracepção, não se separa o sexo de algum elemento estranho a ele, ou de um elemento a ele vinculado por um lamentável acidente no projeto biológico do sexo. O que se separa é a ação do sexo – a ação aparente – do seu significado. A realidade do sexo é inteiramente deixada de lado, e o que as pessoas realizam é uma simples pantomima.
Ou seja, o que na verdade se separa é o “corpo” do sexo da “alma” do sexo, e o que fica para trás é o cadáver do sexo. A anticoncepção oferece às pessoas um sexo aparentemente corporal, ou seja, essencialmente privado de alma. Ora, isso não passa de sexualidade mumificada, de sexo morto. O nosso mundo moderno, com efeito, está empenhado em matar o sexo e a sexualidade humanos.
Muitos casais modernos perderam o verdadeiro apetite sexual. A sexualidade que os caracteriza não é uma sexualidade humana. Uma masculinidade e uma feminilidade aleijadas convergem num simulacro de união que não é autenticamente conjugal. Esses casais correm o perigo de morrer de inanição conjugal-sexual, na medida em que estão privados das qualidades humanizadoras e personalizantes do verdadeiro sexo conjugal, do autêntico bonum sexualitatis, desse verdadeiro bem que é a sexualidade. Uma esterilidade voluntária nega ao seu amor o fruto que o próprio amor – de acordo com a sua natureza – deveria produzir, e do qual necessita para se alimentar e sobreviver.
******************
Autor: Monsenhor Cormac Burke
Fonte: Covenanted Happiness: Love and Commitment in Marriage.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
+Seu comentário será publicado após aprovação.
In Christo Rege!